quarta-feira


Investigação sob encomenda

Editorial Folha

Ficaram claros, por fim, os motivos do governo para reagir como reagiu à reportagem da revista Veja, na edição que começou a circular em 22 de março, que confirmou com dados objetivos os rumores, que corriam havia pelo menos um mês, de que o Planalto preparava um dossiê sobre gastos palacianos no período Fernando Henrique, conforme o Estado noticiou em 19 de fevereiro. Esses rumores foram inicialmente propagados pelos próprios operadores políticos do lulismo, com o intuito de calar as cobranças que a oposição fazia para que se discriminassem as despesas pagas com cartões corporativos para o presidente Lula, que cresceram 900% entre 2003 e 2007. E é bom lembrar o que empresários paulistas ouviram à época da titular da Casa Civil, Dilma Rousseff: “Não vamos apanhar quietos.”

Pois bem. A reação da ministra, expressa em nota oficial, foi negar a montagem do dossiê, alegar que a coleta de documentos sobre a gestão tucana obedecia a uma recomendação do Tribunal de Contas da União (TCU), o que o órgão prontamente desmentiu, e - o mais importante, à luz dos recentes desdobramentos do escândalo - anunciar a abertura de uma sindicância interna para apurar o vazamento de informações sigilosas em poder do governo. No que parecia ser uma incoerência, a Casa Civil havia adotado um procedimento meramente burocrático para esclarecer o que, segundo a sua manifesta avaliação, configurava um episódio da maior gravidade. Em outras palavras, um caso de polícia. Agora que a Polícia Federal (PF) foi chamada a entrar no circuito, passados 17 dias da denúncia, depois detalhada pelo jornal Folha de S.Paulo, as peças se encaixam. Não havia nenhuma incoerência.

Àquela altura, o governo não queria ver os federais bisbilhotando a sua intimidade porque não tinha encontrado a maneira de abrir-lhes as portas sem correr riscos. Ou seja, da maneira prescrita no inquérito instaurado segunda-feira a mando da Casa Civil, que circunscreve o âmbito do trabalho policial ao vazamento de trechos do que constitui - por onde quer que se a examine - uma ação com finalidades políticas espúrias. A lógica do Planalto, exposta pelo ministro da Justiça, Tarso Genro, a quem a PF responde, e pelo seu diretor, Luiz Fernando Corrêa, é a de que vazamento é crime, mas a manipulação de dados no âmbito das repartições, enquanto não vazar, não é crime. O argumento é no mínimo discutível. Se a divulgação de informações sigilosas do setor público representa um ilícito penal, outra coisa não seria a manipulação desses mesmos dados por servidores do Executivo, à revelia da Justiça, do TCU, ou ainda de uma CPI, dotada de atribuições parajudiciais.

De mais a mais, a anuência da Polícia Federal a conduzir um inquérito em termos preestabelecidos pelo governo leva forçosamente a pensar que, em detrimento da incumbência que lhe é própria, de buscar a verdade, ela fará as vezes de instrumento das conveniências de quem a convocou - depois de muito relutar, ressalte-se. Algo parecido com a relação entre o contratante e o contratado de um serviço. Se não é disso que se trata, é ao menos o que a opinião pública tenderá a considerar, erodindo a imagem positiva que se habituou a ter dos federais nos últimos anos, por sua isenção em apurações de grosso calibre. Além desse problema de fundo, há o aspecto técnico propriamente dito. Não está claro se uma investigação sobre um vazamento pode dispensar - e ainda assim chegar a bom termo - o conhecimento pleno da feitura do que se vazou, incluindo os participantes e a cadeia de comando da operação.

A descoberta do autor do vazamento e de suas motivações dificilmente poderá passar ao largo da origem do objeto vazado, assim como o esclarecimento de um roubo parece depender da identificação do dono dos bens roubados. Ou, numa comparação chã, será possível saber por que uma torneira vaza sem desmontá-la?

De todo modo, se o governo nega taxativamente que tenha cometido qualquer delito ao criar um “banco de dados” sobre os gastos presidenciais na gestão anterior, não haveria por que esconder as responsabilidades pelo que seria uma iniciativa limpa e legítima. Mas o governo Lula nunca se distinguiu por saber apagar os incêndios que ele próprio ateia.


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