domingo



“Não existe uma definição consensual ou incontroversa de violência. O termo é potente demais para que isso seja possível.”
Anthony Asblaster
Dicionário do Pensamento Social do Século XX

Charge, Amarildo

sexta-feira

Notas para um possível necrológio político


A queda de José Genoíno

Carlos Eduardo Carvalho

A renúncia de José Genoino à presidência do PT, em 09/07/2005, foi mais uma baixa de grande peso na direção do partido, baixa provocada pelas denúncias de Roberto Jefferson, aquele a quem Lula daria um cheque em branco e dormiria tranqüilo, segundo declarou de público, por livre e espontânea vontade.

Como é usual, a imprensa divulgou resumos da vida política e pessoal de Genoino, todos incompletos e parciais, construídos a partir das preferências de cada autor e dos interesses de quem publica.

Quero também apresentar algumas notas, igualmente incompletas e parciais, lembranças e questionamentos talvez desagradáveis, mas que convém tirar do esquecimento, neste país de memória complexa e difícil.

Convivi com Genoino por dois anos, um quarto de século atrás, na dissidência do PC do B, entre 1979 e 1981. Acompanhei sua carreira política à distância desde então. Confesso abestalhado que fiquei decepcionado com o que assisti, como dizem os versos de meu conterrâneo Raul Seixas.

Cena 1

No final de março de 2002, candidato do Partido dos Trabalhadores ao governo de São Paulo, José Genoino defende "o rompimento puro e simples" com o MST, devido à invasão da fazenda dos filhos do presidente Fernando Henrique, e porque o movimento "continua fazendo provocações contra o PT". As declarações estão na Folha de S. Paulo, 31/03/2002, p.A10.

Não se sabe o que Genoino propunha com "rompimento puro e simples". São palavras muito duras e claras no jargão da política. Na mesma época Genoino endossou o mote da direita paulista, "botar a ROTA na rua", símbolo da truculência e da barbárie que o malufismo encarnou tão bem. Era a imagem que Genoino queria como candidato ao governo de São Paulo: enérgico, duro, defensor da lei e da ordem, da ação policial violenta e decidida "contra os bandidos".

Cena 2

Um ano depois, primeiros tempos do governo Lula, José Genoino assume o lado conciliador e negociador, mas com a direita: defensor das alianças com o grande capital, com a Febraban e com o FMI, defensor de Henrique Meirelles, defensor das políticas de Palocci.

A truculência e a dureza continuam reservadas para a esquerda, para os parlamentares petistas que se recusaram a votar no Congresso as propostas que Lula tomou dos tucanos e decidiu implementar a qualquer custo. Genoino foi um dos principais articuladores da expulsão da senadora Heloisa Helena e dos três deputados do PT.

Cena 3

Em outubro de 1990, com um sorriso desabrido e escandaloso, José Genoino abraça efusivamente o então senador Jarbas Passarinho no Congresso, comemorando a nomeação do ex-ministro da ditadura para o Ministério da Justiça pelo presidente Fernando Collor. A foto escandalosa está na revista IstoÉ. O abraço foi objeto de duros comentários na revista Senhor.

Jarbas Passarinho foi um dos corifeus da ditadura. Em 1968 era ministro do Trabalho. Defendeu o AI-5 com uma frase terrível e famosa: "Às favas (...) neste momento todos os escrúpulos de consciência".

Frase premonitória: as favas a que Passarinho atirou os escrúpulos que deveria ter tido diante da tortura e do assassinato dos companheiros de Genoino, estas mesmas favas receberam os escrúpulos que deveria ter tido Genoino diante de um dos chefes dos assassinos de vários companheiros de luta, companheiros seus e companheiros meus, torturados e executados naqueles anos terríveis.

Não se sabe por que Genoino deu aquele abraço. Não havia qualquer necessidade política. Entendo que era só o gosto de abraçar o carrasco de outrora, agora colega de Congresso.

Genoino abraçou Passarinho por alegria, por compadrismo.

Que escândalo: Genoino e Passarinho em abraço de velhos amigos, como velhos camaradas em dia de rememorar o passado, como veteranos de um mesmo exército, como velhos compadres.

Abraço sorridente para ambos, escárnio asqueroso para quem enfrentou a ditadura, a ditadura dos militares, de Passarinho e de seus colegas de farda, a ditadura de Maluf, de ACM, de Sarney.

O relato da reunião do Conselho de Segurança Nacional, em 13/12/1968, com as palavras de Passarinho, está nas páginas 333-343 de A Ditadura Envergonhada, de Elio Gaspari (Companhia das Letras).

Estão lá também as palavras de Delfim Netto, propondo que fosse ampliada a proposta de Costa e Silva, a proposta que seria o AI-5: "Estou plenamente de acordo com a proposição que está sendo analisada no Conselho. (...) direi mesmo que acredito que ela não é suficiente. (...) deveríamos dar a Vossa Excelência a possibilidade de realizar certas mudanças constitucionais que são absolutamente necessárias para que este país possa realizar o seu desenvolvimento com maior rapidez".

Diga-se em favor de Delfim Netto: é o mesmo golpista de sempre, inimigo jurado de leis e de preceitos constitucionais. Nada de novo em suas propostas de hoje, contra a Constituição de 1988, em favor de "certas mudanças constitucionais", agora do déficit nominal zero, em 1968 em defesa da "governabilidade" do grotesco "governo" de Costa e Silva, que lhe abriu os espaços para arrochar salários e concentrar o capital.

Espantoso é o governo Lula dar espaços a Delfim. Espantoso é Genoino, presidente do PT, não considerar provocações as propostas de Delfim, a mesma palavra "provocações" proferida em 2002 contra o MST. Reconheço, porém: nada deve ser motivo de espanto depois do abraço em Jarbas Passarinho.

Cena 4

José Genoino chora na entrevista no Programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, em 04/07/2005, ao lembrar das torturas que sofreu depois de preso no Araguaia, em 1972. Chora e protesta contra as declarações do deputado Jair Bolsonaro, de que entregara seus companheiros na ocasião, como se falar sob tortura fosse um escândalo e não fosse um escândalo a própria tortura. Ponto para Genoino.

A forte reação de José Genoino frente às provocações de Bolsonaro torna ainda mais incompreensível a troca de abraços e cumprimentos com Jarbas Passarinho, um dos chefes dos torturadores e assassinos que barbarizaram ele e tantos outros, um dos chefes e guias de Bolsonaro nos anos terríveis.

Bolsonaro não é pior que Jarbas Passarinho, é apenas mais explícito. Suas palavras grotescas não são piores que os argumentos empolados e supostamente refinados com que inúmeras vezes Passarinho defendeu seus colegas e seus comandados que torturaram e assassinaram.

Para um, Genoino tem lágrimas e protestos. Para outro, Genoino teve abraços e cumprimentos.

Cena 5

Na dissidência do PC do B, em 1979-1981, Genoino radicaliza suas posições políticas e se torna um dos líderes do grupo ultra-esquerdista que depois organizou o PRC. Ao contrário de Genoino, eu me convencera da necessidade de um partido reformista e de massas, um partido social-democrata, e estava entre os que propunham que nos dissolvêssemos no PT e abandonássemos qualquer organização de tipo leninista. Fomos criticados com muito vigor por Genoino e seus camaradas.

Também no PT me dei mal: defendia o apoio à candidatura de Franco Montoro em São Paulo e a campanha pela Assembléia Constituinte, dois sintomas de grave direitismo.


Saí da dissidência e do PCdoB em 1981 e me filiei ao PT, convencido de que se tornaria afinal o partido reformista que eu procurava. Anos depois, me deparo com Genoino na extrema-direita do PT, como um dos responsáveis pela conversão do PT às teses neoliberais, ou simplesmente liberais, ou liberais-sociais, sabe-se lá o que isso significa, não importa o nome. Genoino ajudou a transformar o PT neste partido que aí está, o partido que implementa as políticas da direita, do FMI, da Febraban, do PSDB e, para implementá-las, aplica métodos já conhecidos. Não se sabe como Genoino mudou de posição política de forma tão radical.

No final de uma tensa e difícil reunião, um dos companheiros da "direita" da dissidência, frasista incorrigível, recomenda a Genoino que durma bem, mas antes olhe com atenção se não haveria algum Drácula liberal sob sua cama, pronto a mordê-lo e contaminá-lo. Genoino reclama da piada, diz que é desrespeitosa, sai furioso, tão furioso que não olhou embaixo da cama! Naquela noite lancinante, lá estava o Drácula liberal que o mordeu.

Haverá explicação melhor para a conversão do ultra-esquerdista do PRC no ultraliberal de hoje?

Cena 6

Genoino aparece compungido, de mãos dadas com Antônio Carlos Magalhães, em uma das muitas homenagens a Luís Eduardo Magalhães, o filho de ACM morto em 1998. Genoino se desdobra em rapapés ao velho oligarca. Não tem pudor nem reserva.

Parlamentar brasileiro típico, pela mordida de Drácula ou por opção pessoal, distribui abraços e afagos a "adversários políticos", aqueles mesmos que são de fato nossos inimigos jurados, aqueles mesmos que foram cúmplices e chefes de assassinos e torturadores durante a ditadura, gente como Passarinho e ACM.

Epílogo precoce, ou intervalo para outras cenas

Parece agora muito incerto o futuro político de Genoino.

Lula jogou seus aliados às feras, para se salvar. José Dirceu, José Genoino, Delúbio e Silvinho estão no dilema de aceitar a desmoralização, a tarja de corruptos, ou de se revoltar e mostrar que não agiram sozinhos. Não se sabe o que farão.

Quem irá agora consolar Genoino? ACM lhe dará a mão, compungido? Parece que não.

Muitos dirão que não é preciso, pois Genoino não morreu fisicamente e talvez nem tenha morrido politicamente. As mortes políticas no Brasil muitas vezes não se confirmam. As cobras-de-vidro renascem.

Genoino é prova disso. Anos atrás, em artigo na Folha de S. Paulo (fico devendo a referência precisa, lembro apenas de ter lido), Genoino chamou de "burra" a militância do PT. A militância não se revoltou e nem protestou quando ele virou presidente do PT, eleito com os votos dos representantes da militância.

Ou a militância não tem memória, ou a militância não tem disposição para sequer pedir explicações ao autor de ofensa tão grosseira, ou a militância aceita qualquer coisa, feliz por receber orientações claras dos caciques do partido, aqueles mesmos que consideram a militância um bando de paus-mandados, mão-de-obra barata.

Dar a volta por cima na política brasileira não é tão difícil assim. O decisivo é criar a versão correta, neste país em que se consegue ser sem ter sido, em que o acontecido nem sempre foi.

Genoino fez fama como guerrilheiro, se fez na política com a aura de ex-guerrilheiro, mas nunca deu um tiro em combate. Esteve na preparação da guerrilha, queria ser guerrilheiro, mas nunca foi de fato um guerrilheiro, pelo simples e conhecido motivo de que estava preso antes de a guerrilha começar.

Curiosa é a memória brasileira: o guerrilheiro mais conhecido do país nunca participou de um combate, não deu sequer um tiro contra o inimigo. Foi apenas um aprendiz, mas é tido como profissional.

Os mais jovens talvez nunca tenham ouvido falar disso: dizia-se em minha juventude que a maior batalha havida no Brasil foi a que não aconteceu, a batalha de Itararé, a batalha que iria ocorrer na Revolução de 1930.

Em homenagem àquela que não foi, mas que passou a ser sem ter sido, o inesquecível Aparício Torelli atribuiu a si o título de Barão de Itararé, nome com que se imortalizou como o grande humorista comunista, autor da célebre frase "Há algo no ar além dos aviões de carreira".

Quem quiser saber mais sobre "o barão mais plebeu da história" leia o belo artigo do grande Gilberto Maringoni, a sair em breve na revista Nossa História.

Tudo é possível neste país, até um comunista ser barão, até Genoino se recuperar na política e desmoralizar meu modesto necrológio.

É o que veremos nos próximos capítulos da lamentável novela em curso neste pedaço do mundo.

Por enquanto, respeitemos nossas lágrimas, mas inda mais nossas risadas, que sem um pouco de humor ninguém segura este rojão – não é um duplo plágio, são apenas mais duas homenagens a nossos poetas maiores.

* O autor é economista, professor da PUCSP. Foi filiado ao PT de 1981 a 1997. Coordenou o Programa de Governo de Lula em 1989
Fonte: Planeta Porto Alegre